A
Psicanálise nos apresenta a possibilidade de contemplar nosso self (eu)
de uma forma mais sensível, e desvelar nosso mundo interno, tão obscuro e quase
intocável àquele que afasta de si a responsabilidade de conhecer à si mesmo.
Agregando à rica interpretação psicanalítica sobre o eu e os mistérios
que englobam nosso psiquismo, podemos fazer uso de outras ferramentas tão ricas
quanto a Psicanálise na busca pelo conhecimento do ser. A mitologia, a
filosofia, os contos, as religiões enriquecem generosamente o pensamento
psicanalítico. E neste sentido, é sobre um aspecto da religiosidade que desejo
aqui refletir, e tomar emprestado uma parcela do vasto conhecimento que tem de
grado à nos oferecer.
Os Vedas
traz a tríplice divindade, nomeada Trimúrti (“três formas”) como a forma
manifesta da divindade suprema. Esta é formada por três deuses: Brahma, Vishnu
e Shiva, sendo cada um a representação de uma parte do ciclo de existência de
todas as coisas. Brahma é o criador, aquele que dá inicio a todo o processo, a
criação de tudo que há, age pelo modo da paixão. Vishnu é o deus que busca
manter, preservar as coisas do mesmo jeito que foram criadas, sem muitas
transformações, age pelo modo da bondade. E por último, Shiva, que trabalha pelo
modo da ignorância, sendo o destruidor, àquele que põe fim a todo ciclo para
que um novo se inicie.

Levando à
refletir sobre a durabilidade de nossa existência, e de tudo o que é material,
essa filosofia nos faz indagar sobre o porque de nossas ansiedades quanto ao
futuro, tão ligadas ao desejo que nos move incessantemente em busca de um tempo
que não podemos ter o controle; de nossas angústias quanto ao passado, tão
presas à memória, que não nos permite deixar o que passou e vivenciarmos o aqui
e o agora. Presos na ignorância do não ser, pela busca de possuir um tempo que
não nos possuí.

O apego
tanto pelo passado, quanto pelo futuro nos cega diante das transformações e
possibilidades de expansão. Quando não temos a capacidade de nos desapegarmos,
Shiva chega e destrói tudo causando um sofrimento que poderia ser vivenciado de
uma maneira menos dolorosa. Entretanto, se aprendendo a dádiva do desapego,
temos a chance de passar por cada perda sem desestruturarmos nosso ego, e
quando Shiva chegar com sua força destruidora, já não nos encontraremos em
desespero pela perda do que na realidade nunca possuímos.
“O que aconteceu só se mantém
através da memória, e a memória é seletiva, traiçoeira em potencial, por
fundir-se ao conteúdo impensado da mente, invalidando assim sua fidedignidade
com a realidade dos fatos. O desejo logo se mostra ilusório, já que o “mais
tarde” é mistério. O espaço/tempo do aqui e do hoje é uma graça da existência,
o real se faz no agora e aqui.” (Martino, 2015)
O tempo na
realidade é imutável, somos nós que passamos pelo tempo, e de nós só resta o
aqui e o agora, o momento da transformação e da realidade. O ontem não se
modifica, nada podemos fazer quanto ao passado, apenas aceitá-lo e nos
responsabilizarmos pelo que fomos e pelo que nos transformamos. E ainda assim,
a compreensão que temos de nós mesmos quanto ao que fomos no passado, é
limitada demais, e tentar compreender esse eu que se foi, é ilusão. O
que fui à um segundo atrás, já não sou mais. O amanhã é mistério, e viver agarrado
a esse mistério traz ansiedades infundadas, desnecessárias. É no hoje que temos a possibilidade de nos
conhecermos, de nos apresentarmos e lançar luz ao desconhecido que há em nós
mesmos.
Jéssica Tathyane Barbosa
Psicoterapeuta e escritora
Autora do livro A Depressão e
o Pensar: Sob a Perspectiva Psicanalítica
Contato - 17- 99195-8277
t_ati_jessi@hotmail.com