sábado, 2 de abril de 2016

Do desapego antes do fim

            
A Psicanálise nos apresenta a possibilidade de contemplar nosso self (eu) de uma forma mais sensível, e desvelar nosso mundo interno, tão obscuro e quase intocável àquele que afasta de si a responsabilidade de conhecer à si mesmo. Agregando à rica interpretação psicanalítica sobre o eu e os mistérios que englobam nosso psiquismo, podemos fazer uso de outras ferramentas tão ricas quanto a Psicanálise na busca pelo conhecimento do ser. A mitologia, a filosofia, os contos, as religiões enriquecem generosamente o pensamento psicanalítico. E neste sentido, é sobre um aspecto da religiosidade que desejo aqui refletir, e tomar emprestado uma parcela do vasto conhecimento que tem de grado à nos oferecer.
           
Os Vedas traz a tríplice divindade, nomeada Trimúrti (“três formas”) como a forma manifesta da divindade suprema. Esta é formada por três deuses: Brahma, Vishnu e Shiva, sendo cada um a representação de uma parte do ciclo de existência de todas as coisas. Brahma é o criador, aquele que dá inicio a todo o processo, a criação de tudo que há, age pelo modo da paixão. Vishnu é o deus que busca manter, preservar as coisas do mesmo jeito que foram criadas, sem muitas transformações, age pelo modo da bondade. E por último, Shiva, que trabalha pelo modo da ignorância, sendo o destruidor, àquele que põe fim a todo ciclo para que um novo se inicie.
          
  Levando à refletir sobre a durabilidade de nossa existência, e de tudo o que é material, essa filosofia nos faz indagar sobre o porque de nossas ansiedades quanto ao futuro, tão ligadas ao desejo que nos move incessantemente em busca de um tempo que não podemos ter o controle; de nossas angústias quanto ao passado, tão presas à memória, que não nos permite deixar o que passou e vivenciarmos o aqui e o agora. Presos na ignorância do não ser, pela busca de possuir um tempo que não nos possuí.
           
O apego tanto pelo passado, quanto pelo futuro nos cega diante das transformações e possibilidades de expansão. Quando não temos a capacidade de nos desapegarmos, Shiva chega e destrói tudo causando um sofrimento que poderia ser vivenciado de uma maneira menos dolorosa. Entretanto, se aprendendo a dádiva do desapego, temos a chance de passar por cada perda sem desestruturarmos nosso ego, e quando Shiva chegar com sua força destruidora, já não nos encontraremos em desespero pela perda do que na realidade nunca possuímos.

“O que aconteceu só se mantém através da memória, e a memória é seletiva, traiçoeira em potencial, por fundir-se ao conteúdo impensado da mente, invalidando assim sua fidedignidade com a realidade dos fatos. O desejo logo se mostra ilusório, já que o “mais tarde” é mistério. O espaço/tempo do aqui e do hoje é uma graça da existência, o real se faz no agora e aqui.” (Martino, 2015)


            O tempo na realidade é imutável, somos nós que passamos pelo tempo, e de nós só resta o aqui e o agora, o momento da transformação e da realidade. O ontem não se modifica, nada podemos fazer quanto ao passado, apenas aceitá-lo e nos responsabilizarmos pelo que fomos e pelo que nos transformamos. E ainda assim, a compreensão que temos de nós mesmos quanto ao que fomos no passado, é limitada demais, e tentar compreender esse eu que se foi, é ilusão. O que fui à um segundo atrás, já não sou mais. O amanhã é mistério, e viver agarrado a esse mistério traz ansiedades infundadas, desnecessárias.  É no hoje que temos a possibilidade de nos conhecermos, de nos apresentarmos e lançar luz ao desconhecido que há em nós mesmos.




Jéssica Tathyane Barbosa
Psicoterapeuta e escritora
Autora do livro A Depressão e o Pensar: Sob a Perspectiva Psicanalítica
Contato - 17- 99195-8277

 t_ati_jessi@hotmail.com

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